Publicação fixa: Argumentos lógicos X tratados teológicos

Meus textos questionando o sistema religioso e as mentiras do cristianismo são sempre com argumentos de raciocínio lógico, porque para mim vale o que está escrito sem interpretações humanas, sem oráculos para traduzir o texto... Continue lendo.

quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Sobre meu pai, cuidar de idosos e senilidade

Conforme o tempo vai passando – dois meses e dez dias – o momento Pollyanna vai chegando aos poucos e estou tentando ver o lado bom de tudo o que aconteceu. Um lado bom é que meu pai se foi antes de piorar. Ele estava dando muito trabalho, começando a ter que usar fraldas e resistindo de todas as formas, não queria de jeito nenhum, e estava até violento por causa disso. E foi logo no início desse processo que ele se foi. Outro ponto positivo é que ele se foi rápido, ficou 22 dias internado – e na hora parecia uma eternidade –, mas agora posso ver que foi tudo muito rápido e ele não ficou entrevado em uma cama por anos, e vejo nisso resposta às nossas orações, porque sempre pedi isso ao Eterno. Outro lado bom é que ele não se foi dormindo, como sempre imaginei que seria – é, eu ia ver se ele estava respirando de madrugada, de manhã, rsrs –, mas ele precisou ficar esse tempo no hospital para que todos os filhos pudessem se despedir dele, foi um mal necessário, hoje entendo isso, havia coisas a serem resolvidas e espero que tenham sido.

Não, eu não vou ficar dizendo que meu pai era bonzinho só porque morreu. O bichinho era osso duro de roer. Teimoso, reclamava de tudo, nada estava bom, muito orgulhoso, não pedia ajuda para nada por causa do orgulho – ou excesso de cavalheirismo, rsrs [p.s.: eu vivia dizendo que aprendi humildade com ele, ou melhor, a não ser como ele rsrs] –, e não pedia desculpas por nada, enfim, ficou um velho bem difícil de se lidar. Briguei muito com ele, porque ele era como criança, precisava de limites. Não admitia suas dificuldades. Para começar a usar a bengala, quando passou a cair na rua, foi uma novela. Depois a bengala não dava mais conta, trocamos pelo andador, e foram duas novelas, e ele xingou muito por causa disso. E a fralda nem deu tempo de tanto drama, porque ele foi para o hospital logo no início da tentativa de fazê-lo usar fraldas.

Mas ele era como criança, a senilidade estava avançando. Apesar de reconhecer todas as pessoas, a memória atual estava bem fraquinha, às vezes lembrava a Dory do Nemo. Como não nos ensinaram sobre demência ou senilidade, pensávamos como a maioria da população, que o sintoma maior era o esquecimento, mas não sabíamos que a violência fazia parte dos sintomas, e ele estava ficando violento nos últimos meses de vida. Não era o caso do meu pai não reconhecer as pessoas ou esquecer de coisas importantes, como disse, ele reconhecia as pessoas, lembrava das coisas fundamentais do dia a dia, mas esquecia coisas simples e principalmente situações de estresse.  

Por exemplo, se ele caía, no dia seguinte não se lembrava porque estava com o braço roxo. Se aprontava alguma travessura e a gente brigava com ele, no dia seguinte não se lembrava disso  – ou fingia esquecer rsrsrs – já que pedir desculpas não fazia parte do vocabulário dele. Ele esquecia que eu morava no Rio e Gláucia no Espírito Santo, ainda pensava que éramos "vizinhas" de Rio e Belford Roxo. Quando ele ficou um tempo na minha casa e fui levá-lo para casa da Gláucia e fomos de avião, no dia seguinte chegou uma visita na casa dela e a visita ficou conversando com meu pai na sala, e da cozinha eu ouvi a visita perguntar para meu pai como foi no Rio de Janeiro. Aí o velho respondeu que fazia um tempão que ele não visitava o Rio. Então eu fui para a sala, ele olhou para mim e disse: "Ué, você está aí, chegou quando?" E eu tive que lembrá-lo que ele estava no Rio comigo, e que havíamos chegado no dia anterior, juntos, de avião, lembra? E aí ele se lembrou.

Em situações de estresse era pior ainda. Há uns anos montamos uma casa para ele morar junto com a irmã dele, porque os dois estavam muito sozinhos, conversamos e ele aceitou numa boa. Mas não durou um mês, porque ele ficou reclamando de tudo, e dizia que só ficaria lá se eu fosse morar junto com eles. Não deu certo e ele voltou para minha casa. E depois ele não se lembrava que morou lá com minha tia. Sempre que o levávamos para visitá-la, ele falava como se não tivesse morado lá naquela casa. Era muito estranho.

E em uma outra situação de estresse, quando ele estava passando uns dias na casa de parentes dele, uma pessoa levou ele para passear na casa dela, mas sem autorização de quem estava responsável por ele  – ele era como criança, se chamassem para comprar bala, ele iria –, e depois a pessoa responsável foi buscar e ele fez birra e não quis ir embora, tive que ir buscá-lo e quando me viu já foi levantando e me seguindo para ir embora, disse que queria ir para casa. Mas no dia seguinte ele não sabia dizer como chegou na casa da pessoa que o levou, não sabia se foi de ônibus, de carro, de táxi. Não sabia quanto tempo ficou lá – um dia, uma noite e uma manhã –, e não se lembrava de que foram buscar e ele não quis ir, ficou vermelho dizendo que eu estava inventando aquilo, que não aconteceu. E ainda pensou que fui eu que o levei para a casa da pessoa, porque ele não se lembrava de quase nada. Ele só disse que foi porque ela mandou, aí ele foi passear com ela, mas não sabia para onde foi, nem porque foi levado para lá, nem como chegou lá.

Enfim, esse era meu pai no fim da sua vida. Continuava engraçado, contando piadas, falando gracinhas e pérolas, como uma criança. Gostava de boa comida, macarrão um dia sim e outro também. Mas um bichinho teimoso e desobediente, uma criança grande e velhinha, mas uma criança.

Eu sempre dizia que não tinha pai, que tinha avô, porque ele se casou aos 40 e foi pai aos 42 anos, e quando passamos a cuidar dele ele já estava bem idoso, e eu e Gláucia assumimos a missão muito novas, e isso explica nossa dificuldade em lidar com os sintomas da senilidade. Apesar de termos passado por vários médicos, nunca nenhum deles conversou sobre isso com a gente, infelizmente. Hoje percebo que podíamos ter tratado, ter dado um remédio que diminuísse a teimosia e a violência. E agora o que posso fazer, e tenho feito, é conversar com pessoas que conheço e que cuidam de idosos, alertando para que elas procurem tratamento antes que os sintomas piorem.

Sempre me perguntava porque nossos idosos são tão difíceis, a maioria é assim, poucos são bonzinhos. Via as notícias de cuidadores que maltratavam idosos e ficava pensando nisso tudo, e hoje percebo que muita coisa ruim poderia ser evitada se houvesse mais informação correta sobre envelhecimento, demência, senilidade. O jeito agora é trabalhar para que outras pessoas não passem pelo que nós passamos, por desconhecermos os detalhes da situação.

Tentamos fazer o nosso melhor, como já disse no outro texto, mas sei que falhamos, e hoje vejo que falhamos mais por desconhecimento do assunto. Ainda assim hoje estou começando a ver o lado bom de tudo isso, e sei que com o tempo vamos conseguir superar a tristeza, espero que sim. E espero que nossa experiência possa ajudar outras pessoas a lidarem com a difícil, cansativa e desgastante tarefa de cuidar de idosos.

Obs.: De forma alguma esse momento Pollyanna serve para o tratamento do hospital. Continuo revoltada com o sistema de saúde e ali não houve um só lado bom de tudo isso.

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