Publicação fixa: Argumentos lógicos X tratados teológicos

Meus textos questionando o sistema religioso e as mentiras do cristianismo são sempre com argumentos de raciocínio lógico, porque para mim vale o que está escrito sem interpretações humanas, sem oráculos para traduzir o texto... Continue lendo.

domingo, 16 de janeiro de 2011

A enchente do final de O Guarani

A tragédia na Região Serrana me fez lembrar a cena final do livro O Guarani, de José de Alencar, quando acontece uma enchente e Peri e Ceci flutuam em cima de uma palmeira. Leia uns trechos do epílogo:

"Quem plainasse nesse momento sobre aquela solidão, e lançasse os olhos pelos vastos horizontes que se abriam em torno, se a vista pudesse devassar a distancia de muitas léguas, veria ao longe, na larga esteira do Paraíba, passar rapidamente uma forma vaga e indecisa.
Era a canoa de Peri, que impelida pelo remo e pela viração da manhã corria com uma velocidade espantosa, semelhando uma sombra a fugir das primeiras claridades do dia.
[...]
A canoa resvalou pela flor da água como uma garça ligeira levada pela correnteza do rio.
Peri remava sentado na proa.
Cecília, deitada no fundo, meio apoiada sobre uma alcatifa de folhas que Peri tinha arranjado, engolfava-se nos seus pensamentos, e aspirava as emanações suaves e perfumadas das plantas, e a frescura do ar e das águas.
[...]
Peri estava distraído; seu olhar fitava-se no horizonte com uma atenção extraordinária; a inquietação que se desenhava no seu semblante era o indício de algum perigo, embora ainda remoto:
Sobre a linha azulada da cordilheira dos Órgãos, que se destacava num fundo de púrpura e rosicler, amontoavam-se grossas nuvens escuras e pesadas, que, feridas pelos raios do ocaso, lançavam reflexos acobreados.
Daí a pouco a serrania desapareceu envolta nesse manto cor de bronze, que se elevava como as colunas e abóbadas de estalactites que se encontram nas grutas das nossas montanhas. O azul puro e risonho que cobria o resto do firmamento contrastava com a cinta escura, que ia enegrecendo gradualmente à medida que a noite caia.
Peri voltou-se.
— Tu queres ir para terra, senhora?
— Não; estou tão bem aqui! Não foste tu que me trouxeste?
— Sim; mas...
— O quê?
— Nada; podes dormir sem receio!
Ele tinha se lembrado que entre dois perigos o melhor era preferir o mais remoto; aquele que ainda estava longe e talvez não viesse.
Por isso resolveu não dizer nada a Cecília, e conservar-se atento e vigilante para salvá-la, se o que ele temia se realizasse.
Peri havia lutado com o tigre, com os homens, com uma tribo de selvagens, com o veneno; e tinha vencido. Era chegada a ocasião de lutar com os elementos: com a mesma confiança calma e impassível, esperou pronto a aceitar o combate.
Anoiteceu.
O horizonte, sempre negro e fechado, se iluminava às vezes com um lampejo fosforescente; um tremor surdo parecia correr pelas entranhas da terra e fazia ondular a superfície das águas, como o seio de uma vela enfunada pelo vento.
Entretanto, ao redor tudo estava quieto; as estrelas recamavam o azul do céu; a viração aninhava-se nas folhas das árvores: os murmúrios doces da solidão cantavam o hino da noite.
Cecília adormeceu no seu berço, murmurando uma prece.
Era alta noite; sombras espessas cobriam as margens do Paraíba.
De repente um rumor surdo e abafado, como de um tremor subterrâneo, propagando-se por aquela solidão, quebrou o silêncio profundo do ermo.
Peri estremeceu: ergueu a cabeça e estendeu os olhos pela larga esteira do rio, que, enroscando-se como uma serpente monstruosa de escamas prateadas, ia perder-se no fundo negro da floresta.
O espelho das águas, liso e polido como um cristal, refletia a claridade das estrelas, que já desmaiavam com a aproximação do dia; tudo estava imóvel e quedo.
O índio curvou-se sobre a borda da canoa, e de novo aplicou o ouvido; pela superfície do rio rolava um som estrepitoso: semelhante ao quebrar-se da catadupa precipitando-se do alto dos rochedos.
Cecília dormia tranqüilamente; sua respiração ligeira ressoava com a harmonia doce e sutil das folhas da cana quando estremecem ao sopro tênue da aragem.
Peri lançou um olhar de desespero para as margens que se destacavam a alguma distancia sobre a corrente plácida do rio. Quebrou o laço que prendia a canoa e impeliu-a para a terra com toda a força do remo, que fendeu a água rapidamente.
À beira do rio elevava-se uma bela palmeira, cujo alto tronco era coroado pela grande cúpula verde, formada com os leques de suas folhas lindas e graciosas. Os cipós e as parasitas, engrazando-se pelos ramos das árvores vizinhas, desciam até o chão, formando grinaldas e cortinas de folhagem, que se prendiam às hastes da palmeira.
Tocando a margem, Peri saltou em terra, tomou Cecília meio adormecida nos seus braços, e ia entranhar-se pela mata virgem que se elevava diante dele.
Nesse momento o rio arquejou como um gigante estorcendo-se em convulsões, e deitou-se de novo no seu leito, soltando um gemido profundo e cavernoso.
Ao longe o cristal da corrente achamalotou-se; as águas frisaram-se; e um lençol de espuma estendeu-se sobre essa face lisa e polida, semelhante a uma vaga do mar desenrolando-se pela areia da praia.
Logo todo o leito do rio cobriu-se com esse delgado sendal que se desdobrava com uma velocidade espantosa, rumorejando como um manto de seda.
Então no fundo da floresta troou um estampido horrível, que veio reboando pelo espaço; dir-se-ia o trovão correndo nas quebradas da serrania.
Era tarde.
Não havia tempo para fugir; a água tinha soltado o seu primeiro bramido, e, erguendo o colo, precipitava-se furiosa, invencível, devorando o espaço como algum monstro do deserto.
Peri tomou a resolução pronta que exigia a iminência do perigo: em vez de ganhar a mata, suspendeu-se a um dos cipós, e, galgando o cimo da palmeira, ai abrigou-se com Cecília.
A menina, despertada violentamente e procurando conhecer o que se passava, interrogou seu amigo.
— A água!... respondeu ele, apontando para o horizonte.
Com efeito, uma montanha branca, fosforescente, assomou entre as arcarias gigantescas formadas pela floresta, e atirou-se sobre o leito do rio, mugindo como o oceano quando açoita os rochedos com as suas vagas.
A torrente passou, rápida, veloz, vencendo na carreira o tapir das selvas ou a ema do deserto; seu dorso enorme se estorcia e enrolava pelos troncos diluvianos das grandes árvores, que estremeciam com o embate hercúleo.
Depois, outra montanha, e outra, e outra, se elevaram no fundo da floresta; arremessando-se no turbilhão, lutaram corpo a corpo, esmagando com o peso tudo que se opunha à sua passagem.
Dir-se-ia que algum monstro enorme, dessas jibóias tremendas que vivem nas profundezas da água, mordendo a raiz de uma rocha, fazia girar a cauda imensa, apertando nas suas mil voltas a mata que se estendia pelas margens.
Ou que o Paraíba, levantando-se qual novo Briareu no meio do deserto, estendia os cem braços titânicos, e apertava ao peito, estrangulando-a em uma convulsão horrível, toda essa floresta secular que nascera com o mundo.
As árvores estalavam; arrancadas do seio da terra ou partidas pelo tronco, prostravam-se vencidas sobre o gigante, que, carregando-as ao ombro, precipitava para o oceano.
O estrondo dessas montanhas de água que se quebravam, o estampido da torrente, os trôos do embate desses rochedos movediços, que se pulverizavam enchendo o espaço de neblina espessa, formavam um concerto horrível, digno do drama majestoso que se representava no grande cenário.
As trevas envolviam o quadro e apenas deixavam ver os reflexos prateados da espuma e a muralha negra que cingia esse vasto recinto, onde um dos elementos reinava como soberano.
Cecília, apoiada ao ombro de seu amigo, assistia horrorizada a esse espetáculo pavoroso; Peri sentia o seu corpinho estremecer; mas os lábios da menina não soltaram uma só queixa, um só grito de susto.
Em face desses transes solenes, desses grandes cataclismas da natureza, a alma humana sente-se tão pequena, aniquila-se tanto, que se esquece da existência; o receio é substituído pelo pavor, pelo respeito, pela emoção que emudece e paralisa.
O sol, dissipando as trevas da noite, assomou no oriente; seu aspecto majestoso iluminou o deserto; as ondas de sua luz brilhante derramaram-se em cascatas sobre um lago imenso, sem horizontes.
Tudo era água e céu.
A inundação tinha coberto as margens do rio até onde a vista podia alcançar; as grandes massas de água, que o temporal durante uma noite inteira vertera sobre as cabeceiras dos confluentes do Paraíba, desceram das serranias, e, de torrente em torrente, haviam formado essa tromba gigantesca que se abatera sobre a várzea.
A tempestade continuava ainda ao longo de toda a cordilheira, que aparecia coberta por um nevoeiro escuro; mas o céu, azul e límpido, sorria mirando-se no espelho das águas.
A inundação crescia sempre; o leito do rio elevava-se gradualmente; as árvores pequenas desapareciam; e a folhagem dos soberbos jacarandás sobrenadava já como grandes moitas de arbustos.
A cúpula da palmeira, em que se achavam Peri e Cecília, parecia uma ilha de verdura banhando-se nas águas da corrente; as palmas que se abriam formavam no centro um berço mimoso, onde os dois amigos, estreitando-se, pediam ao céu para ambos uma só morte, pois uma só era a sua vida.
[...]
— Olha! disse ela com a sua voz maviosa, a água sobe, sobe...
— Que importa! Peri vencerá a água, como venceu a todos os teus inimigos.
— Se fosse um inimigo, tu o vencerias, Peri. Mas é Deus... É o seu poder infinito!
— Tu não sabes? disse o índio como inspirado pelo seu amor ardente, o Senhor do céu manda às vezes àqueles a quem ama um bom pensamento.
E o índio ergueu os olhos com uma expressão inefável de reconhecimento.
Falou com um tom solene:
'Foi longe, bem longe dos tempos de agora. As águas caíram, e começaram a cobrir toda a terra. Os homens subiram ao alto dos montes; um só ficou na várzea com sua esposa.
'Era Tamandaré*; forte entre os fortes; sabia mais que todos. O Senhor falava-lhe de noite; e de dia ele ensinava aos filhos da tribo o que aprendia do céu.
'Quando todos subiram aos montes ele disse:
‘Ficai comigo; fazei como eu, e deixai que venha a água.’
'Os outros não o escutaram; e foram para o alto; e deixaram ele só na várzea com sua companheira, que não o abandonou.
'Tamandaré tomou sua mulher nos braços e subiu com ela ao olho da palmeira; ai esperou que a água viesse e passasse; a palmeira dava frutos que o alimentavam.
'A água veio, subiu e cresceu; o sol mergulhou e surgiu uma, duas e três vezes. A terra desapareceu; a árvore desapareceu; a montanha desapareceu.
'A água tocou o céu; e o Senhor mandou então que parasse. O sol olhando só viu céu e água, e entre a água e o céu, a palmeira que boiava levando Tamandaré e sua companheira.
'A corrente cavou a terra; cavando a terra, arrancou a palmeira; arrancando a palmeira, subiu com ela; subiu acima do vale, acima da árvore, acima da montanha.
'Todos morreram. A água tocou o céu três sóis com três noites; depois baixou; baixou até que descobriu a terra.
'Quando veio o dia, Tamandaré viu que a palmeira estava plantada no meio da várzea; e ouviu a avezinha do céu, o guanumbi, que batia as asas.
'Desceu com a sua companheira, e povoou a terra.'
[...]
A cúpula da palmeira, embalançando-se graciosamente, resvalou pela flor da água como um ninho de garças ou alguma ilha flutuante, formada pelas vegetações aquáticas.
[...]
A palmeira arrastada pela torrente impetuosa fugia...
E sumiu-se no horizonte."


Tamandaré - É o nome do Noé indígena. A tradição rezava que na ocasião do dilúvio ele escapara no olho de uma palmeira, e depois povoara a terra. É a lenda que conta Peri.

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